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01 outubro

A CRONISTA DA ALMA FEMININA E A SOCIEDADE LÍQUIDA DE BAUMAN - Crítica Martha Medeiros

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Coisas da vida



Nome: Coisas da Vida
Autora: Martha Medeiros
Número de Páginas: 240
Editora: L&PM
Nas crônicas de Martha Medeiros há espaço para todas as normalidades e todas as "esquisitices" que caracterizam o Homo sapiens modernus: o sentimento de frustração, o tic-tac do relógio biológico feminino, a necessidade de dinheiro versus a necessidade de sossego, mulheres que decidem não ter filhos, o progressivo apagamento das fronteiras entre um e outro sexo, máquinas de provocar orgasmos, choros, filmes, livros e músicas, a delícia e a tragédia de amar duas pessoas ao mesmo tempo, a delícia e a tragédia de não amar ninguém e tantas outras coisas da vida.



“Coisas da vida”, escrito por Martha Medeiros, é um compilado de crônicas publicadas originalmente nos jornais Zero Hora e O Globo entre Setembro de 2003 e Setembro de 2005. E, como o próprio título sugere, essas histórias tratam das relações humanas “e tudo de mágico e de trágico que elas representam numa vida”.

Desde o lançamento do livro, se passaram 12 anos, entretanto, os temas abordados pela autora permanecem extremamente atuais, afinal, a existência é um tema recorrente em uma série de gêneros literários. Mas, o que faz dessas crônicas de Martha Medeiros especiais, é a forma sensível e humanizada de falar sobre todo e qualquer assunto no que diz respeito ao relacionamento entre pessoas e a vida. 

Temas como traição, família, casamento, amizade e cotidiano são abordados e discutidos de forma leve e reflexiva em suas crônicas - considerando o contexto de pós-modernidade nos quais elas foram escritas. Enquanto escritora, Martha reafirma nessa obra o título de cronista da alma feminina, ao trazer em suas temáticas, o olhar e a representação de uma minoria que está em constante ritmo de transformação e reconhecimento de papéis na sociedade atual, ao considerar as questões de igualdade de gênero, maternidade e casamento. 

Quando se fala sobre pós-modernidade, o sociólogo Zygmunt Bauman dispensa apresentações. Ele é o responsável pelo conceito de “modernidade líquida”, que se refere a fragilidade e insegurança das nossas relações com as coisas e as pessoas numa sociedade repleta de contradições internas. Para Bauman, o principal traço da pós-modernidade advém da batalha entre a liberdade individual em oposição à segurança projetada em torno de uma vida estável. 

Escritas no início da era da globalização - fenômeno que consiste no encurtamento das distâncias por meio da união econômica, política, social e cultural - as crônicas de Martha aparecem na qualidade de um retrato despretensioso e leve dessa sociedade que Bauman conceituou como sociedade líquida. A fluidez dos relacionamentos, a busca constante pela satisfação individual, os prós e contras da tecnologia e da globalização e, por fim, os dilemas femininos. 

Ao longo do livro, é possível notar a presença da batalha entre a liberdade e a vida estável em várias instâncias. Se em “Interrompendo as buscas”, Martha defende a instituição casamento e as maravilhas propiciadas pela calma de um amor tranquilo, ao passar algumas páginas, chegamos na crônica “Esconderijo Conjugal”, que faz uma crítica ao casamento.
A solidão, que sempre pareceu nos proteger, na verdade nos coloca no centro das atenções, permite que coloquem o dedo nas nossas feridas. Já o casamento nos tira da prateleira, nos resguarda, nos esconde tão bem e tão sem alarde que a gente nem percebe que está escondido. p. 91
Outras contradições aparecem quando se trata do feminino. Considerando o passado em que as mulheres estavam destinadas a servir seus maridos e filhos em casa, as histórias de Medeiros trazem as novas contradições inerentes às mulheres contemporâneas nessa luta entre liberdade e vida estável. Qual seria a melhor escolha: monogamia ou poligamia? maternidade ou carreira? Além do processo de desconstrução de padrões de beleza e pensamentos machistas. 

Tudo isso aparece de forma despretensiosa, leve e sensível. Já que todas as contradições apresentadas, são comuns do homem moderno. A sensação que dá, é que cada história é feita para nós, ou para alguém que conhecemos. Uma espécie de divã da vida moderna. Afinal, por diversas vezes, temos a impressão que várias dos nossos devaneios e esquisitices foram ali representadas. Ao percorrer por uma série de temas, sem a intenção de doutrinar, ou dar soluções, Martha consegue estimular o pensamento e a reflexão. Também consegue provocar sorrisos, e, porque não, o choro? 

Os curtos relatos escritos em primeira pessoa se aproxima de uma conversa informal, por meio do uso frequente dos pronomes você e nós, para estabelecer uma relação com o leitor. E, por vezes, a leitura de outros autores é o gatilho de Medeiros para uma boa crônica. É o caso de “Estrangeirismos”, que despontou da leitura do dicionário de palavras & expressões estrangeiras, escrito por Luiz Augusto Fischer. Cineastas também não ficam para trás, e, por diversas vezes, serviram de inspiração para as histórias da autora, ficando também para os leitores, boas recomendações. Woody Allen aparece como favorito de Martha e é citado em várias ocasiões. Por outras vezes, a observação de um motoboy ao ver os fogos de artifícios pela primeira vez, é o suficiente para fazer a gente refletir sobre as coisas que realmente importam nessa vida. 

Ao prezar pela atemporalidade e ao extrair o comportamento social da era pós moderna, “Coisas da Vida” cumpre o seu papel de crônicas que servem como mecanismo para entender como pensavam uma sociedade em um determinado tempo-espaço.

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